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Cuiabá MT, 23/11/2024
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De Última! Só lendo para acreditar

comTEXTO : Acerto de Contas

OUTRAS PUBLICAÇÕES
31 de Março, 1964
Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
29/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO CCLXXXI

Em fins de novembro, num entardecer de um dos mais belos poentes do ano, com o brilho reluzente de um círculo imenso, suspenso, o pôr-do-sol cor de rosa solto no ar, num fundo infinito, cor de chumbo, que refletia no rio apenas a metade exposta do céu, a metade que lhes cabia, enquanto, lentamente, a outra descia terra adentro, além do manguezal. Num bote à vela, embarcaram no cais da Tavares de Lira, somente os dois de passageiros e dois marujos, fizeram a travessia...

...Durante a navegação Fizeram a travessia, menos de meia hora, permaneceram imóveis como estátuas e pareciam rezar, reverenciando a natureza em toda a sua beleza e plenitude, oferecendo seus rostos à carícia da brisa doce que anunciava a noite. Beirando o rio, oculto pela bujarrona, atento aos movimentos de mudança da corrente, do vento, segurando o leme na popa, o mestre cantava um coco que um menino, como verdadeiro gajeiro, apoiando-se no mastro da embarcação, respondia no ritmicamente...

...¨Tirando o pau de Paulino?¨... ...mandava o mestre, segurando o pau do leme, no banco da popa, enquanto brincava com a outra mão nas tranqüilas e verdes águas do Potengi, banhadas pela luz purpúrea do crepúsculo e o aprendiz de marinheiro respondia...

...¨Paulino fica sem pau/ manera o pau/manera o pau¨...

...Num lindo retiro, o alpendre de uma pequena casa abandonada, feita de barro, coberta de palha de coqueiro, à noite assaram um peixe numa improvisada fogueira e à luz de chamas fizeram amor, admirando com prazer, extasiados, as luzes da sua Natal...

...Depois, deitados na areia fina de um canto escondido da praia, um momento de rara paz, fizeram amor várias vezes...

...Encantada com a deliciosa ginga na tapioca, maravilha culinária típica da barraca de Dona Dalila, o coração da Redinha, feita de polvilho e piaba frita no dendê, Isabel anunciou que aquela antiga vila de pescadores seria seu lar algum dia, quando se formasse e casasse...

...¨Me encanta, es preciosa¨!...

...Riram muito quando uma senhora perguntou se ela era da mesma terra do rapaz que fizera a velha voar... ...¨E foi verdade isso, minha senhora?¨, perguntou. A mulher fez o sinal da cruz e exclamou...

...¨Cruz credo se foi! E teve muita gente que viu¨!...

...Pepe entrara definitivamente no imaginário coletivo da Redinha...

...Pensando em fazer-lhe uma surpresa, alguns dias depois, ao desembarcar no cais do Canto do Mangue, sugeriu a Isabel que passassem na Ribeira, para mostrar-lhe uma ¨coisa¨...

...Percorreram ruas silenciosas, vazias, as lojas com portas arriadas, e chegaram às travessas que tinham nomes de países latino-americanos. Passaram pelas travessas Argentina, México, Venezuela e ao entrar na que seria do país de Isabel, depararam-se com a surpresa, ela mudara de nome, de Travessa Equador, homenagem da cidade a um despachante aduaneiro que tivera escritório durante muitos anos, ali, na travessa que pertencia à Isabel. Decepcionada, ela protestou...

...¨Viva la Travessa Ecuador. Viva el Ecuador!¨...

...Compreendeu a decepção mas não pode deixar de lembrar da figura do velho despachante, a ocupar na Ribeira um dos postos mais cobiçados da cidade, a percorrer becos e travessas com tolerância e compreensão para com aquele bairro que começava a decair...



CAPÍTULO CCLXXXII

Ao reaparecer no Djalma algumas semanas depois, surpreendeu-se ao encontrar Rodrigues, a mulher e os filhos gêmeos...

...Falaram de tudo e não tocaram no assunto dos gringos, aparentemente coisa do passado e Margarida, a esposa, ofertou-lhe um livro de contos de um primo. Rodrigues confidenciou...

...¨Eu estava certo. O legista confirmou as suspeitas. Mas, e aí, se deu em nada? Pegue o telefone da Superintendência e me ligue nos próximos dias. Você se lembra da loura americana? Eu vi você babar pra ela diversas vezes. Pois bem, telefone para mim. Vamos ter novidades e é bom que você acompanhe. Você sabe porquê¨...

...Cabisbaixo, soturno, ao voltar para o apartamento, narrou a Isabel a conversa e ela, assumindo um ar maroto, de falso espanto, disse...

...¨És la vida! Que culpa tenemos por vivir? Passe-me las pantalones blancas, primero. No comprendo por que tienes que estar informado acerca de la gringa rúbia¨...

...Subestimando a incômoda sensação de insegurança, no dia seguinte discou para o número que lhe deixara Rodrigues e avisou à Isabel que ia encontrar-se com o policial...

...¨Yo me voy contigo!¨...

...Na hora marcada, oito da noite, começou a tomar cerveja ao lado de Isabel, no bar vazio até mesmo da presença do velho na janela.

...Passei muito tempo nesse bar a pensar em você, nos meus filhos, em como os perdi, no país...

...No som vindo do mar, Elis Regina cantava Belchior...

...¨Minha dor é perceber/Que apesar de termos feito/Tudo o que fizemos/Ainda somos os mesmos/E vivemos como nossos pais¨...

... ¨Este Rodrigues, por exemplo¨... comentou Isabel, terminada a música, ¨...alguma coisa me diz que ele sabe precisamente quem é você, o que faz, o que quer... Não te assusta, um pouco?¨...

...Sinceramente, não. Depois daquela manhã no Sebastião, quando ele e os outros canas me cercaram, pensei muito e concluí que os federais não querem nada comigo...

...¨Ou não podem fazer nada contigo¨...

...Não respondeu e por alguns minutos permaneceram calados. De mãos dadas, suspiravam à passagem da fantasia de uma dimensão para outra, ao som de flautas sopradas pela brisa de uma noite quase silenciosa e sem vento, um ambiente de oásis, paz, nirvana habitado por duendes, fadas, sereias, ameaçado de repente por nuvens carregadas que se reuniam cada vez mais perto da terra, sombrias...

...Claramente perplexo e encabulado com a luminosa beleza índia, que o deixou um tanto perturbado, Rodrigues entrou apressado, desculpou-se do atraso e, em poucas palavras, falou o estritamente necessário, a razão do encontro, porque tinha que voltar imediatamente ao que fazia...

...¨O delegado Chico mandou um dossiê sobre você, pelo malote. Alguém quis queimá-lo na Casa Grande, uma história incrível, que você é da KGB, que Natal está tomada por cubanos, que o reitor é subversivo, uma coisa fantástica. É claro que Brasília não levou a sério. Se você quiser ver, passe na SR. No mais, está tudo tranqüilo. Deixo Natal, infelizmente. Chamaram-me de volta à Brasília. Já morei lá, muitos anos. Se você precisar, é só me procurar no Abacateiro, na 115 Sul, o bar do Mané. É onde a gente se reúne para uma cervejinha. É o nosso Djalma, só falta o mar!... disse, sorrindo. Meu, do Santiago, do Chico... Apareça lá. Não esqueça os amigos, ok? Bom, tenho que ir. Ainda tenho um nó para desatar¨...

...¨Ah, a propósito, Rodrigues, diz ao agente Santiago que não tenho nada pessoal, contra ele. Senti que ele não foi com minha cara e é possível que tenha ficado com alguma bronca de mim¨...

...¨Que é isso! Não há nada. Sabe, o Santiago é o que a gente chama de ´cana quente´, ´tira´, entende? Dorme, come e bebe polícia. É meio paranóico. Passou muitos anos no Dops e vê comunista em tudo o que é lugar. Mas, sorriu, é gente boa. Você vai ver¨...

Dê-lhe um abraço, assim mesmo...

...Se tivesse ido desacompanhado, talvez o encontro resultasse em maiores informações. Antes de sair, Rodrigues puxou-o para um lado, de modo que Isabel não ouvisse. Esfregando as mãos como se estivesse com frio, em tom misterioso, anunciou...

...¨A gringa mais nova foi embora ontem. Ela não tinha nada, estava aqui de férias, acompanhando a chefona, a irmã. A universidade e a prefeitura denunciaram os acordos que mantinham com os norte-americanos do navio e os últimos americanos receberão avisos para deixar o país ainda nesta noite, em 24 horas. Achei que você devia saber¨...

...Vão embora só por estas razões?...

¨Você sabe que não¨, e sorriu outra vez, dando-lhe um forte abraço...

...¨Até mais. Não esqueça de me procurar em Brasília, quando for lá de novo¨...

...De novo? Como você sabe que estive lá?...

Rodrigues impacientou-se e saiu da mesma forma como chegara, apressadamente...

...¨Como disse Santiago, essa merda tem que secar sem feder¨...

...¨Ah!, e diga-me uma coisa, naquele dia, no Caravelas, você o chamou de professor. Por quê?¨...

...¨Porque ele assim se acha. Cá entre nós, ele é formado e só porque é bacharel em Direito e Ciências Jurídicas e Sociais, confunde erudição com sabedoria, gosta de repetir passagens inteiras de livros, cita de cor as páginas dos livros que leu, enfim, a gente o chama de professor por gozação¨...

...¨É isso aí, Rodrigues, bota ´pra´ fora esses gringos¨...

...Isabel não perguntou o que conversaram. Ainda assim ele a botou a par e recordou a história de Roxie, a menina dourada e infantil encantada de mulher fatal.



CAPÍTULO CCLXXXIII

O que fazer? O mundo interrompera o movimento e a eternidade se cobria de olhares de luz e esperança. Viviam em outra dimensão, longe do rebuliço das horas e gozavam no bar vazio o presente insignificante... Isabel lembrava Cris, em certos momentos...

...”Sabe o que eu gostava de cantar, quando morava no Recife? Trechos da peça ´O homem de la Mancha´, do personagem de D. Quijote... ¨É minha lei, é minha questão/Mudar este mundo, cravar este chão/Não importa saber/Se é terrível demais/Quantas guerras terei/Que vencer por um pouco de paz?!¨...

...¨Tudo vai terminar bem¨, disse ela, ¨não é possível mudar nada nem recriar o mundo. Dentro de cada um de nós está uma luz, a do mundo. Até nesse Rodrigues. A sabedoria está dentro de nós e além de nós. Precisamos é da soma da paz e da ciência, paciência¨...

... Súbito, tomada por uma estranha sensação de alívio, com uma voz que quase não saía, comentou...

...¨Quantas dificuldades o ser humano teve que atravessar, antes de atingir o estado em que nos achamos atualmente? Ninguém pensa nisso. Crer que tudo se sabe é um erro profundo. Até 1500 o sol era fixo e a terra girava em torno dele, e a humanidade continua burra...

...¨Fue aqui, no?¨...

...Aqui o que, amor?...

...¨En esta misma mesa. No te acuerdas?¨...

...Ah, sim... foi nesta mesa que você cantou ´Gracias a la vida´. Faz um monte de tempo que você não canta nada. Canta agora, para mim canta...

...Baixinho, tá? Bem baixinho, e te dedico porque é só para você. Se souberes a letra, canta comigo, acompanha-me...

Não havia ninguém no bar. Com o rosto colado no dele, baixinho, suavemente, Isabel começou a cantar...

...¨Volver a los dies e sete/Después de viví un siglo/És como descifrar signos/Sin ser sabio competente¨...

...A um sinal, com voz trêmula, engasgada, ele continuou...

...¨Volver a ser de repente/Tan frágil como um segundo/És como sentir profundo/Como un niño frente a Dios/Eso és lo que siento yo/En esto instante fecundo¨...

...Cantaram juntos o refrão, Isabel continuou e quando chegou em certo ponto, apertando-lhe o braço ele pediu...

...”Esta parte é só minha, deixa-me cantar...

...¨Mís pasos retrocedidos/Cuando el de ustedes avanza¨...

...Não agüentou. Parou, soluçou uma frase a mais e continuou...

...¨El arco de las alianzas/Ha penetrado a mi nido/Con todo su colorido/Ha penetrado a mís vienas/Hasta las más duras cadenas¨...

...Mesmo aos sobressaltos, com uma voz que não saía, presa ao nó da garganta, ele tentou fazer coro...

...¨Hasta las más duras/Cadenas si abrieron/Como por encanto/És como um diamante fino/Que alumbra mí alma serena¨...

...As emoções divididas com Violeta Parra os afastara do ambiente a tal ponto, que eles não haviam visto a tormenta se formar, o que todo mundo parecia ter visto, daí a explicação de serem os únicos fregueses no bar. O horizonte escureceu repentinamente, a lua sumiu no breu, ouviram um rugido rouco, longínquo, parecido com o de animal selvagem, eram os trovões ribombando no meio de uma tempestade surgida no horizonte. Nuvens densas e espessas avançavam sobre a praia, um incrível balé de raios de luz e sombras que se movia em ritmo muito rápido, anunciava boa chuva a caminho, em rajadas fortes de vento, atiçando as ondas, que aumentavamn uma fúria incrível, com violência, golpeando a praia. Era muita chuva, muita água. Assustados, pararam de cantar. Nuvens negras, com trovões e muitos raios, vinha na direção deles violenta tempestade elétrica, rapidamente aproximando, o que levara os garçons a fechar janelas e portas no bar. Por alguns instantes o espetáculo da natureza, dos raios estalando ao longo da praia, os encantou, mas, com o aumento no ar do cheiro do temporal, assustou-os. Surpreendidos pelos primeiros respingos, a ventania acentuada, forte, impeliu-os para a praia, sem enxergar nada, nem as luzes dos postes da avenida. Envoltos na imensidão da noite, saíram sem acertar a conta, correndo no meio da chuva, o trovejar cada vez mais perto, um atrás do outro os raios rasgavam o céu...

...Saíram de mãos dadas à procura de um táxi, mas era tarde, a chuva forte caía feroz, na forma de gigantesco paredão de água, a grande tempestade desabava como se o mar tivesse subido de repente ao céu e desabado sobre a cidade...

...Totalmente coberta de um meio fio a outro por um tapete alvo de areia, mal dava para ver a avenida circular...

...Ao assobiar do vento, partindo das nuvens, cortando o ar e espalhando-se numa trajetória horizontal, como se evitassem tocar a agua, os raios voavam sobre o oceano, até sumir, e a tempestade castigava a praia com enormes ondas que subiam, batiam e quebravam nos arrecifes, na calçada, lavando o calçadão...

...Sem outra escolha a não ser esperar a tormenta passar, debaixo da trovoada, seguiram apressadamente atrás de um abrigo, caminhando a passos rápidos, mais rápidos do que as dunas de areia que se moviam se como nuvens em ondas pela calçada, sobre o asfalto, açoitados nas pernas pelo vento forte que varria tudo na praia, impulsionando e acumulando toneladas de grãos de areia nas encostas nuas do morro para formar novas dunas móveis na direção do Forte dos Reis Magos, do rio Potengi e das praias do norte...

...Enquanto o mar rugia enfurecido, uma poeira branca de leve espuma saía das enormes ondas provocadas pela tempestade, algumas com mais de três metros, encrespadas, indisciplinadas, que, com freqüência cada vez maior, se chocavam umas contra as outras, batiam nos arrecifes com incrível violência e arrebentavam na beira da praia. Como lâminas afiadas de aço prateadas, incontroláveis, poderosíssimas descargas elétricas cortavam o espaço, clareavam a escuridão e se enfiavam no oceano, fazendo ribombar colossal e ininterruptamente, seguidos de fortíssimas ondas de choque da energia mais pura, em estado natural, um após o outro, dentro e fora das nuvens, os trovões rasgavam no céu o ar escuro da noite, faziam tremer a praia inteira...

...Chovia muito mais do que o normal, era quase nula a visibilidade, não se via quase nada. Abrigados numa pequena caverna improvisada, cavada pela maré nos alicerces da calçada, assim ficaram, encolhidos, por quase duas horas, a pele arrepiada, admirando o mar agitado e o espetáculo de luz, à espera do trovão depois do raios, contando devagar o intervalo entre a luz e a explosão, cada número contado equivalente a 100 metros... 1,2,3,4...

...¨Esse caiu perto, a uns 400 metros pra lá do Sebastião¨...

...Temendo pisar na areia molhada, terrível condutor, ela quis saber se não estariam muitos próximos das descargas elétricas...

...¨Tenho muito medo de raios, amor. Zeus está irado, e, pelo jeito, Posseidon, deus do mar, também¨...

...¨Todos nós temos medo, mas fique tranqüila, a sola do meu sapato é de borracha. A sua, é?¨...

...¨Estou descalça¨...

...¨Não vai acontecer nada¨...

...Para tentar acalmá-la, sugeriu-lhe que fingissem que estavam ainda nos tempos do homem das cavernas...

...¨Não passamos de trogloditas e acreditamos que é d(eu)s quem faz o sol nascer, a chuva cair, a planta crescer. Ele cuidará para que nenhum raio nos atinja¨...

...¨O quê? Agora acreditas nele?¨...

...¨Cá entre nós, Isabel, sem brincadeiras, eu sei que a razão matou d(eu)s, mas, se ele existe, a tempestade é ele, e, se não for, deve ser algo bem parecido. Sempre que não entende uma coisa e se sente ameaçado pelo oculto, sobrenatural, o ser humano inventa divindades. No dia em que nasci, dominado de pavor, um japonês de Hiroshima achou que a bomba atômica era d(eu)s; então, o homem, que a inventou é d(eu)s. Por saber ser d(eu)s, e dominar tudo, o homem inventou-o, mas, daqui para a frente, o mundo vai perder, um a um, todos os tabus. O pior é que, como se não bastasse, o ser humano ainda inventou a religião e religião e política são duas coisas opostas, a primeira tem o dogma da fé, o sacrificium intellectus ou reconhecimento incondicional do fato íntimo irracional, dizia Carl Gustav Jung definiu, e muito bem; e política é a lógica ou arte de governar como insistia um antigo companheiro daqui de Natal, que já morreu, Zé Aguinaldo. Ele dizia que só quando os meios de produção puderem ser usados nas quantidades que a humanidade realmente necessita e quando a propriedade privada for totalmente abolida, é que a sociedade começará a ser transformada, de forma gradual. Queremos acabar com a dominação e exploração do homem pelo homem, sim¨, dizia o velho Zé, ¨por amor aos e pelos homens, temos um objetivo a ser alcançado, e não será alcançado se não for acompanhado do amor pela humanidade, nossa fé no socialismo, que é a arma que a burguesia e o imperialismo mais temem, e é por ela e em nome dela, antes de tudo, que devemos ser conseqüentes¨...



CAPÍTULO CCLXXXIV

¨Se você não acredita em d(eu)s, no diabo, então!?¨...

...¨Quem seria o diabo, então? O raio? Não se preocupe, Isabel. Estamos de volta ao princípio, às cavernas, vamos reinventar d(eu)s. Resta saber se nos outros bilhares de galáxias haverá tempestades e se ele será o mesmo.

...¨Bobagem... Não vai acontecer nada porque d(eu)s é mesmo aquele velhinho que nos acompanhou na infância, barbas brancas, compridas que saia das nuvens, como nos ensinaram no catecismo. Você verá daqui a pouco ele aparecer no horizonte. Essa tempestade é passageira¨, disse ela, acrescentando que d(eu)s é uma estrela, que ¨os átomos e elementos químicos da matéria que formam as nossas moléculas vieram das estrelas ou, ao menos, do núcleo de alguma estrela. Viemos do espaço, y por lo tanto, D(yo)s és una estrella¨...

...¨Você já leu Heine, poeta alemão?...

...Isabel fez sinal que não conhecia...

...¨Heinrich Heine primeiro perguntou de onde viemos, depois, disse que não foi d(eu)s quem criou o homem, mas o homem é que criou d(eu)s, aliás, ele e Jean-Jacques Rousseau disseram a mesma coisa. Já te disse antes que d(eu)s é uma abstração imortal, não disse? Sabes por quê? Porque tudo tem uma explicação científica, menos d(eu)s. Como disse há mais de 100 anos o filósofo Immanuel Kant, pode-se supor mas não provar a existência de d(eu)s, o que significa um atraso mental da humanidade que, sem uma explicação para a vida, termina inventando e se satisfazendo com esse ´milagre´ chamado d(eu)s. Por quê devo acreditar no que não posso explicar?...

...¨Não blasfemes assim! Não temes a d(eu)s? Não temes ser castigado por um raio, ahorita mismo?¨...

...¨Há quem diga que o temor a D(eu)s é o princípio da sabedoria, mas, se ele existe, não pode condenar-me... nunca fiz nada contra ele. Como fazer alguma coisa contra o nada? Não tenho motivo para temer o que não existe. Depois, descobri que ele não se importa com aqueles que não ama, e tenho certeza de que sou um deles. Você falou em castigo, pois bem, sempre que há um d(eu)s, há normas, preconceito, pecado, temor e culpa. É por isso que eu digo que nunca haverá um d(eu)s único, universal. Vão matar quem, em seu nome?¨...

...Quieta, Isabel desistiu de retomar àquela discussão que nunca dera em nada, mas ainda falou¨...

...¨Eu gosto da idéia de que ele está comigo, às vezes isso me ajuda. Se não existe, por quê a humanidade sente tanta falta dele?¨, ela perguntou e ele arriscou...

...¨Ora, porque ele foi inventado exatamente para que o ser humano sentisse sua falta e dependesse dele¨...

...Isabel permaneceu em silêncio, linda, posta em sossego, olhava a tempestade se afastar, repetindo, baixinho...

...¨Gloria in excelsis Dei!¨...

...¨Posso fazer uma confissão?¨...

...¨Claro, amor, hágala¨...

...Isabel aconchegou-se como se à espera de mais que uma confissão, um desabafo, e ele disse...

...¨Eu sei que foram as moléculas de carbono e água que permitiram o surgimento da vida humana, mas o objetivo de qualquer comunista é ver a humanidade feliz e, nesta noite, sou mais comunista do que nunca fui em toda a minha vida. Sinto-me feliz por meus filhos, por você, por Cristo, Karl Marx, Marighela, por gente como eu, anônima, operária, de quem ninguém fala nem falará, mas que quiseram e querem ver o semelhante feliz. Mesmo que para isso seja preciso matar, como Caim, Abel, Che Guevara¨...

...¨Sabe o que eu estava pensando, amor? A gente procura, examina, e no fim volta à Grécia antiga, à indagação primeira de Platão, qual o propósito da vida humana?¨...

...¨Também acho, e Aristóteles, seu pupilo, tinha a resposta, o objetivo da vida é a felicidade...

...¨d(eu)s¨, disse ele, suavemente, ¨se existe, se escondeu ou morreu, como muito bem diz o meu Nietszche. De qualquer modo, existindo ou não, criou-nos iguais e, como igual, eu me sinto feliz. Sinto-me igual a seres humanos, anônimos ou simplesmente iguais, como Calabar, Tiradentes, Frei Caneca, o jornalista e o operário metalúrgico enforcados, pois sei que os atos conseqüentes da história são os atos individuais, intransferíveis. Com o orgulho dialético que teria ao dizer isso, o avô dos meus filhos, Yasha, um comunista brasileiro. Pior, sou o último comunista brasileiro, foi isso que as gringas e muita gente nunca entendeu nem entenderá. Eu me sinto, agora, melhor do que já estive em toda a minha vida, como a luz das estrelas, a luz do luar e a força da imaginação, como se fosse um torpedo que atingisse o May Flower, com aqueles peregrinos dentro, aquela gente puritana, dona da mercadoria individual mais poderosa do mundo, o d(eu)S que cada um tem dentro de si e que leva cada qual a tentar vencer na vida, em nome do medo e da própria insignificância. É Caim, falar assim? Independente da caridade cristã, capitalista ou dos erros da URSS, em breve Caim vencerá, o medo de morrer morrerá e o ser humano será invencível. Existe o ser superior, é apenas questão de perspectiva, e a geologia já mostrou que o Polo Norte nem sempre foi no Norte e que o planeta inverteu-se várias vezes. Há sempre um cataclisma na vida, seja geológico ou humano, e eu tenho os meus, você tem os seus e a vida não passa de uma suave e permanente tempestade. Eu sei que não sou a bonança, mas sei que ela virá.



CAPÍTULO CCLXXXV -- FINAL

Abraçando-o, Isabel gritou ao mar...

...¨Viva la vida, la libertad y la felicidad!¨...

...As sirenes soaram mais alto que o furor da ventania e da chuva, e deu para ver duas viaturas negras da Polícia Federal descendo a Ladeira do Sol, em alta velocidade, no rumo de Areia Preta, onde viviam as derradeiras enfermeiras gringas da cidade. As luzes, vermelhas e azuis piscavam, anunciava o ataque...

...¨Nosso lado triunfará, com certeza¨, sussurrou Isabel, com a voz delicada, quase inaudível, ¨pero antes quiero darte las gracias por Samuel¨...

...Ele nada comentou, via a tempestade perder fôlego, dissiparem-se as nuvens, afinar a chuva e o vento se acalmar e quando ela se foi completamente e o céu começou a se tornar dourado, refletido no murmúrio calmo do oceano que se tornara plácido e silencioso, os primeiros raios de sol anunciaram o alvorecer de uma quieta manhã...

...Só se ouvia o chiado suave, intercalado, do fluxo e refluxo das ondas mansas lambendo com espuma branca as escuras rochas da Ponta do Morcego...

...O mar aquietara-se, transformara-se numa lâmina opaca, cinza, estendida, imensa e límpida, intacta, até o horizonte infinito...

...Em silêncio um com o outro, nesses primeiros raios vermelhos, amarelos e dourados, brindaram a vida da manhã que começava com um belo e deslumbrante sol, abrindo entre as nuvens um luminoso espaço, cheio de paz e tranqüilidade, sorrindo para a vida. Por último, Isabel comentou...

...¨Você deve estar satisfeito agora que tudo acabou¨...

...¨Nada acabou, amor¨...

...Ao longe, na Tenda do Cigano, um bar popular situado nas grotas da subida do Hospital Miguel Couto, famoso por seu Caldo da Misericórdia, uma sopa especial para o combater ressaca, algum boêmio resolvera acordar a cidade com um vinil arranhado, que soltou no ar e espalhou no vento um samba-canção, ´A flor do eu bairro´, que tinha o lirismo da lua, na voz Nelson Gonçalves...

...Conchegada, com as mãos cruzadas sobre os joelhos, contemplando o mar, Isabel sussurrou...

...¨Estoy um poco mareada. Creo que estoy embarazada¨...

...Ao perceber que ele não entendera o significado de embaraçada, sorriu e disse...

...¨Deixa prá lá¨...

...¨O quê?...

...¨O vento, eu disse, deixa passar¨...

...¨Não, senhora. Você disse embaraçada. Isso quer dizer menstruada?¨...

...¨Quiere decir que tu vás a ser papa!¨...

...O vento fresco acariciou os cabelos de Isabel e enxugou a lágrima caída da inesperada esperança de maternidade...

...´La vida continúa¨...

...Ele conquistara, enfim, a felicidade tão desejada e se sentia orgulhoso como se fora não o ultimo dos potiguares, como costumava dizer, brincando, mas, de fato, o último comunista brasileiro...

...¨A prática é a essência suprema da teoria¨...

...¨Si, és¨... confirmou Isabel, morta de sono...

...E Natal voltava a ser latino-americana, dona da ginga de Samuel, do rebolado cubano, lusitana e pobre, recebendo do oceano os ventos abençoados soprados da África, ventos africanos.

FIM



(1) Do poeta pernambucano Acenso Ferreira.

(2) Ácido lisérgico

(3) Franklin Delano Roosewelt.

(4) Aliança Anticomunista Argentina. A repressão se fazia sem fronteiras e os países do Cone Sul – Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai, ajudavam e recebiam ajuda da repressão brasileira.

(5) por favor, em russo

(6) pivo: cerveja

(7) bequinho, ruazinha

(8) eu falo russo, companheiro

(9) por via das dúvidas

(10) Obrigado, adeus!

(11) boa noite






Contato: togoff@bol.com.br

  

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Editor: Marcos Antonio Moreira
Diretora Executiva: Kelen Marques